A madrugada ia alta. O céu estava todo salpicado de estrelas cintilantes. Suave vento soprava vindo do norte lembrando ser outono a estação do ano naquela ocasião. No mais, tudo era silêncio e escuridão. O coração do jovem Tonico estava aos saltos. Era a primeira vez que iria fazer aquilo e receava fracassar. Se errase que vergonha! Retrato e nome nas manchetes dos jornais, perseguição policial, cadeia, justiça... Que diriam dele os companheiros? Camá-lo-iam de covarde! E covarde ele não era! Nunca foi nem jamais seria! Tinha brio! Haveria de ser bem-sucedido!...
Resolveu então sair em campo e agir. Agir com coragem. Sangue frio. Desmentor. A arma não Falharia. Nem ele. E, assim pensando, Tonico penetrou numa estrada se areia, caminhou até certo trecho onde não havia mais casas e esperou um pouco, fumando nervosamente um cigarro ordinário. Eis que percebeu aproximar-se alguém. Apesar da escuridão, notou que era um homem. Pareceu-lhe ser um velho. Mas logo um velho? Que chateação! Preferia que fosse um moço quanto ele próprio! Um adulto! Mas um velho? Todavia, não podia vacilar. Teria de ir até ao fim. Sem saber explicar por que, eis que lhe surgiu à mente a figura do avô!
Bem, desde criança todos diziam que aquele homem, de cabeça branquinha, sempre a cachimbar um cachimbo malcheiroso e a rezar pelas crianças doentes, era seu avô!... Pai de sua mãe... Em verdade, Tonico não conhecera pai... Sua genitora a lavadeira Gertrudes jamais a ele fizera a menor referência. E quando Tonico tocava no assunto, a pobre mulher se punha a chorar e pedia que mudasse de conversa. Em síntese esta tem sido, até agora, a sua vida na favela. Um casebre pendurado no alto do morro lá pelas bandas da Zona Sul. Não tendo facilidade de aprender, mal freqüentou a escola primária. Além disso, a preguiça sempre foi muito grande e absorvente! Honestamente Tonico concordaria em que a vida solta, a vida sem compromissos nem obrigações, com outros molecotes, era muito melhor!
Num átimo de tempo tudo isso se lhe passou pela mente. Mas a figura do velho avô pairava mais fulgurante sobre aquele pano de fundo de sofrimento e desesperanças.. . Como que se fazia palpável a proteção do velho avô sobre o rapaz pobre e aflito, sobre o jovem revoltado e sem uma segura orientação no caminho do Bem. A figura do ancião como que formulava ardente apelo ao rapaz. Que este renunciasse ao desejo malévolo de que estava possuído. O céu continuava salpicado de estrelas cintilantes. O vento soprava ainda, vindo do Setentrião, a recordar a presença anual do outono.
- Ah! Meu filho! Foi Deus que mandou você ao meu encontro.
Tal frase inesperada do velho que de Tonico se aproximava dentro das sombras da madrugada fê-lo estremecer. “Ah! Se este velhote soubesse de minhas intenções para com ele, não estaria falando em Deus. “Mas o pobre ancião prosseguiu:
- É, meu querido... Foi o Bom Deus que me mandou você. Venha. Ajude-me. Já não consigo andar direito. Estou tão cansado! Acompanhe-me até o meu casebre. Tenho receio de ser assaltado. E eu não posso ser molestado por malfeitores, não! . . . Minha filha desencarnou no hospital esta tarde. Coitada dela! A mesma turbeculose que matou o meu desventurado genro, agora vitimou, também, minha idolatrada filha.
E desatou a chorar convulso pranto.
Tonico viu-se invadido pela emoção. Correu ao encontro do decrépito soluçante. Vendo-se apoiado nos braços do rapaz, o velho continuou sua narrativa:
- Pois é, meu anjo! . . . Minha querida filha morreu e terei então de cuidar de cinco crianças menores. Será que você me acompanha até o meu barracão onde estas crianças órfãs dormem sem saberem a desgraça que as atingiu?
Tonico ficou mais aterrado ainda. Até porque a figura do avô se fazia mais fulgurante em sua memória! Incrível! O avô já estava morto alguns anos atrás e Tonico nunca com ele sonhara. Se quer nele pensara. Conheceu-o pouco. Quando desencarnou, Tonico ainda era meninote. Por que é o seu semblante sereno, tranqüilo, sorridente, cabelos brancos, face encarquilhada, uma simpatia enorme no olhar, lhe parecia tão belo?
Voltando a ocupar-se do ancião, que caminhava soluçante e trôpego, apoiado em seus braços de rapaz forte, Tonico tomou uma resolução. Sim, haveria de levá-lo até seu turgúrio. Dar-lhe-ia total cobertura. Ninguém o molestaria. Tonico não o assaltaria dentro do negrume daquela madrugada de outono.
O céu e as estrelas piscantes testemunharam aquele gesto de regeneração de um ladrão que não queria ser mau. De um ladrão que se fizera marginal por falta de segura orientação no caminho do Bem. E que cedera aos impulsos generosos sugeridos pela proteção espiritual do avô desencarnado.
Irmãos queridos! Num mundo de tanto desamor, de tanta criança sem escola, de tanto jovem sem emprego, de tanto moço sem orientação, este conto dá no que pensar. . . Que podemos fazer, que é que fazemos efetivamente por tornar o mundo um pouco melhor?
História retirada do Reformador, Abril de 1984
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