quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Maria


Junto da cruz, o vulto agoniado de Maria produzia dolorosa e indelével impressão.Com o pensamento ansioso e torturado, olhos fixos no madeiro das perfídias humanas, a ternura materna regredia ao passado em amarguradas recordações.Ali estava, na hora extrema, o filho bem-amado.Maria deixava-se ir na corrente infinda das lembranças. Eram as circunstâncias maravilhosas em que o nascimento de Jesus lhe fora anunciado, a amizade de Isabel, as profecias do velho Simeão, reconhecendo que a assistência de Deus se tornara incontestável nos menores detalhes de sua vida. Naquele instante supremo, revia a manjedoura, na sua beleza agreste, sentindo que a Natureza parecia desejar redizer aos seus ouvidos o cântico de glória daquela noite inolvidável. Através do véu espesso das lágrimas, repassou, uma por uma, as cenas da infância do filho estremecido, observando o alarma interior das mais doces reminiscências. Nas menores coisas, reconhecia a intervenção da Providência celestial;entretanto, naquela hora, seu pensamento vagava também pelo vasto mar das mais aflitivas interrogações.Que fizera Jesus por merecer tão amargas penas? Não o vira crescer de sentimentos imaculados, sob o calor de seu coração? Desde os mais tenros anos,quando o conduzia à fonte tradicional de Nazaré, observava o carinho fraterno que dispensava a todas as criaturas. Freqüentemente, ia buscá-lo nas ruas empedradas, onde a sua palavra carinhosa consolava os transeuntes desamparados e tristes. Viandantes misérrimos vinham a sua casa modesta louvar o filhinho idolatrado, que sabia distribuir as bênçãos do Céu. Com que enlevo recebia os hóspedes inesperados que suas mãos minúsculas conduziam à carpintaria de José!... Lembrava-se bem de que, um dia, a divina criança guiara a casa dois malfeitores publicamente reconhecidos como ladrões do vale de Mizhep. E era de ver-se a amorosa solicitude com que seu vulto pequenino cuidava dos desconhecidos, como se fossem seus irmãos. Muitas vezes, comentara a excelência daquela virtude santificada, receando pelo futuro de seu adorável filhinho.Depois do caricioso ambiente doméstico, era a missão celestial, dilatando-se em colheita de frutos maravilhosos. Eram paralíticos que retomavam os movimentos da vida, cegos que se reintegravam nos sagrados dons da vista, criaturas famintas de luz e de amor que se saciavam na sua lição de infinita bondade. Que profundos desígnios haviam conduzido seu filho adorado à cruz do suplício? Uma voz amiga lhe falava ao espírito, dizendo das determinações insondáveis e justas de Deus, que precisam ser aceitas para a redenção divina das criaturas. Seu coração rebentava em tempestades de lágrimas irreprimíveis; contudo, no santuário da consciência, repetia a sua afirmação de sincera humildade: “Faça-se na escrava a vontade do Senhor!” De alma angustiada, notou que Jesus atingira o último limite dos padecimentos inenarráveis. Alguns  dos populares mais exaltados multiplicavam as pancadas, enquanto as lanças riscavam o ar, em ameaças audaciosas e sinistras. Ironias mordazes eram proferidas a esmo, dilacerando-lhe a alma sensível e afetuosa. Em meio de algumas mulheres compadecidas, que lhe acompanhavam o angustioso transe, Maria reparou que alguém lhe pousara as mãos, de leve, sobre os ombros. Deparou-se-lhe a figura de João que, vencendo a pusilanimidade criminosa em que haviam mergulhado os demais companheiros, lhe estendia os braços amorosos e reconhecidos. Silenciosamente, o filho de Zebedeu abraçou-se àquele triturado coração maternal. Maria deixou-se enlaçar pelo discípulo querido e ambos, ao pé do madeiro, em gesto súplice, buscaram ansiosamente a luz daqueles olhos misericordiosos, no cúmulo dos tormentos. Foi aí que a fronte do divino supliciado se moveu vagarosamente, revelando perceber a ansiedade
daquelas duas almas em extremo desalento. “Meu filho! Meu amado filho!. . .“ exclamou a mártir, em aflição diante da serenidade daquele olhar de melancolia intraduzível. O Cristo pareceu meditar no auge de suas dores, mas, como se quisesse demonstrar, no instante derradeiro, a grandeza de sua coragem e a sua perfeita comunhão com Deus, replicou com significativo movimento dos olhos vigilantes: “Mãe, eis aí teu filho!. . .“ E dirigindo-se, de modo especial, com um leve aceno, ao apóstolo, disse:
“Filho, eis aí tua mãe!”
Maria envolveu-se no véu de seu pranto doloroso, mas o grande evangelista compreendeu que o Mestre, na sua derradeira lição, ensinava que o amor universal era o sublime coroamento de sua obra. Entendeu que, no futuro, a claridade do Reino de Deus revelaria aos homens a necessidade da cessação de todo egoísmo e que, no santuário de cada coração, deveria existir a mais abundante cota de amor, não só para o círculo familiar, senão também para todos os necessitados do mundo, e que no templo de cada habitação permaneceria a fraternidade real, para que a assistência recíproca se praticasse na Terra, sem serem precisos os edifícios exteriores, consagrados a uma solidariedade claudicante. Por muito tempo, conservaram-se ainda ali, em preces silenciosas, até que o Mestre, exânime, fosse arrancado à cruz, antes que a tempestade mergulhasse a paisagem castigada de Jerusalém num dilúvio de sombras. Após a separação dos discípulos, que se dispersaram por lugares diferentes, para a difusão da Boa Nova, Maria retirou-se para a Betãneia , onde alguns parentes mais próximos a esperavam com especial carinho. Os anos começaram a rolar, silenciosos e tristes, para a angustiada saudade de seu coração. Tocada por grandes dissabores, observou que, em tempo rápido, as lembranças do filho amado se convertiam em elementos de ásperas discussões, entre os seus seguidores. Na Batanéia, pretendia-se manter uma certa aristocracia espiritual, por efeito dos laços consangüíneos que ali a prendiam, em virtude dos elos que a ligavam a José. Em Jerusalém, digladiavam-se os cristãos e os judeus, com veemência e acrimônia. Na Galiléia, os antigos cenáculos simples e amoráveis da Natureza estavam tristes e desertos. Para aquela mãe amorosa, cuja alma digna observava que o vinho generoso de Caná se transformara no vinagre do martírio, o tempo assinalava sempre uma saudade maior no mundo e uma esperança cada vez mais elevada no céu. Sua vida era uma devoção incessante ao rosário imenso da saudade, às lembranças mais queridas. Tudo que o passado feliz edificara em seu mundo interior revivia na tela de suas lembranças, com minúcias somente conhecidas do amor, e lhe alimentavam a seiva da vida.
Relembrava o seu Jesus pequenino, como naquela noite de beleza prodigiosa, em
que o recebera nos braços maternais, iluminado pelo mais doce mistério.
Figurava-se- -lhe escutar ainda o balido das ovelhas que vinham, apres sadas
acercar-se do berço que se formara de improviso.
E aquele primeiro beijo, feito de carinho e de luz? As reminiscências envolviam a
realidade longínqua de singulares belezas para o seu coração sensível e
generoso. Em seguida, era o rio das recordações desaguando, sem cessar, na
sua alma rica de sentimentalidade e ternura. Nazaré lhe voltava à imaginação,
com as suas paisagens de felicidade e de luz. A casa singela, a fonte amiga, a
sinceridade das afeições, o lago majestoso e, no meio de todos os detalhes, o filho
adorado, trabalhando e amando, no erguimento da mais elevada concepção de
Deus, entre os homens da Terra. De vez em quando, parecia vê-lo em seus
sonhos repletos de esperança. Jesus lhe prometia o júbilo encantador de sua
presença e participava da carícia de suas recordações.
A esse tempo, o filho de Zebedeu, tendo presentes as observações que o Mestre
lhe fizera da cruz, surgiu na Batanéla, oferecendo àquele espírito saudoso de mãe
o refúgio amoroso de sua proteção. Maria aceitou o oferecimento, com satisfação
imensa.E João lhe contou a sua nova vida. Instalara-se definitivamente em Éfeso, onde as
idéias cristãs ganhavam terreno entre almas devotadas e sinceras. Nunca olvidara
as recomendações do Senhor e, no íntimo, guardava aquele título de filiação como
das mais altas expressões de
amor universal para com aquela que recebera o Mestre nos braços veneráveis e
carinhosos.
Maria escutava-lhe as confidências, num misto de reconhecimento e de ventura.
João continuava a expor-lhe os seus planos mais insignificantes. Levá-la-ia
consigo, andariam ambos na mesma associação de interesses espirituais. Seria
seu filho desvelado, enquanto receberia de sua alma
generosa a ternura maternal, nos trabalhos do Evangelho. Demorara-se a vir,
explicava o filho de Zebedeu, porque lhe faltava uma choupana, onde se
pudessem abrigar; entretanto, um dos membros da família real de Adiabene,
convertido ao amor do Cristo, lhe doara uma casinha pobre, ao sul de Éfeso,
distando três léguas aproximadamente da cidade. A habitação simples e pobre
demorava num promontório, de onde se avistava o mar. No alto da pequena
colina, distante dos homens e no altar imponente da Natureza, se reuniriam
ambos para cultivar a lembrança permanente de Jesus. Estabeleceriam um pouso
e refúgio aos desamparados, ensinariam as verdades do Evangelho a todos os
espíritos de boa-vontade e, como mãe e filho, iniciariam uma nova era de amor, na
comunidade universal.
Maria aceitou alegremente.
Dentro de breve tempo, instalaram-se no seio amigo da Natureza, em frente do
oceano. Éfeso ficava pouco distante; porém, todas as adjacências se povoavam
de novos núcleos de habitações alegres e modestas. A casa de João, ao cabo de
algumas semanas, se transformou num ponto de assembléias adoráveis, onde as
recordações do Messias eram cultuadas por espíritos humildes e sinceros.
Maria externava as suas lembranças. Falava dele com maternal enternecimento,
enquanto o apóstolo comentava as verdades evangélicas, apreciando os ensinos
recebidos. Vezes inúmeras, a reunião somente terminava noite alta, quando as
estrelas tinham maior brilho. E não foi só. De-
corridos alguns meses, grandes fileiras de necessitados acorriam ao sitio singelo e
generoso. A notícia de que Maria descansava, agora, entre eles, espalhara um
clarão de esperança por todos os sofredores. Ao passo que João pregava na
cidade as verdades de Deus, ela atendia, no pobre santuário doméstico, aos que a
procuravam exibindo-lhe suas úlceras e necessidades.
Sua choupana era, então, conhecida pelo nome de “Casa da Santíssima”.
O fato tivera origem em certa ocasião, quando um miserável leproso, depois de
aliviado em suas chagas, lhe osculou as mãos, reconhecidamente murmurando:
“Senhora, sois a mãe de nosso Mestre e nossa Mãe Santissima!”
A tradição criou raízes em todos os espíritos. Quem não lhe devia o favor de uma
palavra maternal nos momentos mais duros? E João consolidava o conceito,
acentuando que o mundo lhe seria eternamente grato, pois fora pela sua grandeza
espiritual que o Emissário de Deus pudera penetrar a atmosfera escura e
pestilenta do mundo para balsamizar os sofrimentos da críatura. Na suahumildade sincera, Maria se esquivava às homenagens afetuosas dos discípulos
de Jesus, mas aquela confiança filial com que lhe reclamavam a presença era
para sua alma um brando e delicioso tesouro do coração. O título de maternidade
fazia vibrar em seu espírito os cânticos mais doces. Diariamente, acorriam os
desamparados, suplicando a sua assistência espiritual. Eram velhos trôpegos e
desenganados do mundo, que lhe vinham ouvir as palavras confortadoras e
afetuosas, enfermos que invocavam a sua proteção, mães infortunadas que
pedjam a bênção de seu carinho.
“Minha mãe dizia um dos mais aflitos como poderei vencer as minhas
dificuldades? Sinto-me abandonado na estrada escura da vida. .
Maria lhe enviava o olhar amoroso da sua bondade, deixando nele transparecer
toda a dedicação enternecida de seu espírito maternal.
“Isso também passa! dizia ela, carinhosamente só o Reino de Deus é bastante
forte para nunca passar de nossas almas, como eterna realização do amor
celestial.”
Seus conceitos abrandavam a dor dos mais desesperados, desanuviavam o
pensamento obscuro dos mais acabrunhados.
A igreja de Éfeso exigia de João a mais alta expressão de sacrifício pessoal, pelo
que, com o decorrer do tempo, quase sempre Maria estava só, quando a legião
humilde dos necessitados descia o promontório desataviado, rumo aos lares mais
confortados e felizes. Os dias e as semanas, os meses e os anos passaram
incessantes, trazendo-lhe as lembranças mais ternas. Quando sereno e azulado, o
mar lhe fazia voltar à memória o Tiberíades distante. Surpreendia no ar aqueles
perfumes vagos que enchiam a alma da tarde, quando seu filho, de quem nem um
instante se esquecia, reunindo os discípulos amados, transmitia ao coração do
povo as louçanias da Boa Nova. A velhice não lhe acarretara nem cansaços nem
amarguras. A certeza da proteção divina lhe proporcionava ininterrupto consolo.
Como quem transpõe o dia em labores honestos e proveitosos, seu coração
experimentava grato repouso, iluminado pelo luar da esperança e pelas estrelas
fulgurantes da crença imorredoura. Suas meditações eram suaves colóquios com
as reminiscências do filho muito amado.
Súbito recebeu notícias de que um período de dolorosas perseguições se havia
aberto para todos os que fossem fiéis à doutrina do seu Jesus divino. Alguns
cristãos banidos de Roma traziam a Éfeso as tristes informações. Em obediência
aos éditos mais injustos, escravizavam-se os seguidores do Cristo, destruíam-se-Ihes os lares, metiam-nos a ferros nas prisões. Falava-se de festas públicas, em que seus corpos eram dados como
alimento a feras insaciáveis, em horrendos espetáculos.
Então, num crepúsculo estrelado, Maria entregou-se às orações, como de
costume, pedindo a Deus por todos aqueles que se encontrassem em angústias
do coração, por amor de seu filho.
Embora a soledade do ambiente, não se sentia só:
uma como força singular lhe banhava a alma toda. Aragens suaves sopravam do
oceano, espalhando os aromas da noite que se povoava de astros amigos eafetuosos e, em poucos minutos, a lua plena participava, igualmente, desse
concerto de harmonia e de luz.
Enlevada nas suas meditações, Maria viu aproximar-se o vulto de um pedinte.
Minha mãe exclamou o recém-chegado, como tantos outros que recorriam ao
seu carinho —, venho fazer-te companhia e receber a tua bênção.
Maternalmente, ela o convidou a entrar, impressionada com aquela voz que lhe
inspirava profunda simpatia. O peregrino lhe falou do céu, confortando-a
delicadamente. Comentou as bem-aventuranças divinas que aguardam a todos os
devotados e sinceros filhos de Deus, dando a entender que lhe compreendia as
mais ternas saudades do coração. Maria sentiu-se empolgada por tocante
surpresa. Que mendigo seria aquele que lhe acalmava as dores secretas da alma
saudosa, com bálsamos tão dulçorosos? Nenhum lhe surgira até então para dar;
era sempre para pedir alguma coisa. No entanto, aquele viandante desconhecido
lhe derramava no íntimo as mais santas consolações. Onde ouvira noutros tempos
aquela voz meiga e carinhosa?! Que emoções eram aquelas que lhe faziam pulsar
o coração de tanta carícia? Seus olhos se umedeceram de ventura,
sem que conseguisse explicar a razão de sua terna emotividade.
Foi quando o hóspede anônimo lhe estendeu as mãos generosas e lhe falou com
profundo acento de amor:
“Minha mãe, vem aos meus braços!”
Nesse instante, fitou as mãos nobres que se lhe ofereciam, num gesto da mais
bela ternura. Tomada de comoção profunda, viu nelas duas chagas, como as que
seu filho revelava na cruz e, instintivamente, dirigindo o olhar ansioso para os pés
do peregrino amigo, divisou também aí as úlceras causadas pelos cravos do
suplício. Não pôde mais. Compreendendo a visita amorosa que Deus lhe enviava
ao coração, bradou com infinita alegria:
“Meu filho! meu filho! as úlceras que te fizeram!. . .“
E precipitando-se para ele, como mãe carinhosa e desvelada, quis certificar-se,
tocando a ferida que lhe fora produzida pelo último lançaço, perto do coração.
Suas mãos ternas e solícitas o abraçaram na sombra visitada pelo luar,
procurando sofregamente a úlcera que tantas lágrimas lhe provocara ao carinho
maternal. A chaga lateral também lá estava, sob a carícia de suas mãos. Não
conseguiu dominar o seu intenso júbilo. Num ímpeto de amor, fez um movimento
para se ajoelhar. Queria abraçar-se aos pés do seu Jesus e osculá-los com
ternura. Ele, porém, levantando-a, cercado de um halo de luz celestial, se lhe
ajoelhou aos pés e, beijando-lhe as mãos, disse em carinhoso transporte:
“Sim, minha mãe, sou eu!... Venho buscar-te, pois meu Pai quer que sejas no
meu reino a Rainha dos Anjos. .
Maria cambaleou, tomada de inexprimível ventura. Queria dizer da sua felicidade,
manifestar seu agradecimento a Deus; mas o corpo como que se lhe paralisara,
enquanto aos seus ouvidos chegavam os ecos suaves da
saudação do Anjo, qual se a entoassem mil vozes cariciosas, por entre as
harmonias do céu.No outro dia, dois portadores humildes desciam a Éfeso, de onde regressaram
com João, para assistir aos últimos instantes daquela que lhes era a devotada
Mãe Santíssima.
Maria já não falava. Numa inolvidável expressão de serenidade, por longas horas
ainda esperou a ruptura dos derradeiros laços que a prendiam à vida material.
A alvorada desdobrava o seu formoso leque de luz quando aquela alma eleita se
elevou da Terra, onde tantas vezes chorara de júbilo, de saudade e de esperança.
Não mais via seu filho bem-amado, que certamente a esperaria, com as boasvindas, no seu reino de amor; mas, extensas multidões de entidades angélicas a cercavam cantando hinos de glorificação.
Experimentando a sensação de se estar afastando do mundo, desejou rever a
Galiléia com os seus sítios preferidos. Bastou a manifestação de sua vontade para
que a conduzissem à região do lago de Genesaré, de maravilhosa beleza. Reviu
todos os quadros do apostolado de seu filho e, só agora, observando do alto a
paisagem, notava que o Tiberíades, em seus contornos suaves, apresentava a forma quase perfeita de
um alaúde. Lembrou-se, então, de que naquele instrumento da Natureza Jesus
cantara o mais belo poema de vida e amor, em homenagem a Deus e à
humanidade. Aquelas águas mansas, filhas do Jordão marulhoso e calmo, haviam
sido as cordas sonoras do cântico evangélico.
Dulcíssimas alegrias lhe invadiam o coração e já a caravana espiritual se dispunha
a partir, quando Maria se lembrou dos discípulos perseguidos pela crueldade do
mundo e desejou abraçar os que ficariam no vale das sombras, à espera das claridades
definitivas do Reino de Deus. Emitindo esse pensamento, imprimiu novo impulso
às multidões espirituais que a seguiam de perto. Em poucos instantes, seu olhar
divisava uma cidade soberba e maravilhosa, espalhada sobre colinas enfeitadas
de carros e monumentos que lhe provocavam assombro. Os mármores mais ricos
esplendiam nas magnificentes vias públicas, onde as liteiras patrícias passavam
sem cessar, exibindo pedrarias e peles, sustentadas por misérrimos escravos.
Mais alguns momentos e seu olhar descobria outra multidão guardada a ferros em
escuros calabouços. Penetrou os sombrios cárceres do Esquilino, onde centenas
de rostos amargurados retratavam padecimentos atrozes. Os condenados
experimentaram no coração um consolo desconhecido.
Maria se aproximou de um a um, participou de suas angústias e orou com as suas
preces, cheias de sofrimento e confiança. Sentiu-se mãe daquela assembléia de
torturados pela injustiça do mundo. Espalhou a claridade misericordiosa de seu
espírito entre aquelas fisionomias pálidas e tristes. Eram anciães que confiavam
no Cristo, mulheres que por ele haviam desprezado o conforto do lar, jovens que
depunham no Evangelho do Reino toda a sua esperança. Maria aliviou-lhes o
coração e, antes de partir, sinceramente desejou deixar-lhes nos espíritos
abatidos uma lembrança perene. Que possuía para lhes dar? Deveria suplicar a
Deus para eles a liberdade?! Mas, Jesus ensinara que com ele todo jugo é suave
e todo fardo seria leve, parecendo-lhe melhor a escravidão com Deus do que a
falsa liberdade nos desvãos do mundo. Recordou que seu filho deixara a força da
oração como um poder incontrastável entre os discípulos amados. Então, rogouao Céu que lhe desse a possibilidade de deixar entre os cristãos oprimidos a força
da alegria. Foi quando, aproximando-se de uma jovem encarcerada, de rosto descarnado e macilento, lhe disseao ouvido:
“Canta, minha filha! Tenhamos bom ânimo!... Convertamos as nossas dores da
Terra em alegrias para o Céu!..
A triste prisioneira nunca saberia compreender o porquê da emotividade que lhe
fez vibrar subitamente o coração. De olhos extáticos, contemplando o firmamento
luminoso, através das grades poderosas, ignorando a razão de sua alegria, cantou
um hino de profundo e enternecido amor a Jesus, em que traduzia sua gratidão
pelas dores que lhe eram enviadas, transformando todas as suas amarguras em
consoladoras rimas de júbilo e esperança. Daí a instantes, seu canto melodioso
era acompanhado pelas centenas de vozes dos que choravam no cárcere,
aguardando o glorioso testemunho.
Logo, a caravana majestosa conduziu ao Reino do Mestre a bendita entre as
mulheres e, desde esse dia, nos tormentos mais duros, os discípulos de Jesus
têm cantado na Terra, exprimindo o seu bom ânimo e a sua alegria, guardando a
suave herança de nossa Mãe Santíssima.
Por essa razão, irmãos meus, quando ouvirdes o cântico nos templos das diversas
famílias religiosas do Cristianismo, não vos esqueçais de fazer no coração um
brando silêncio, para que a Rosa Mística de Nazaré espalhe ai o seu perfume.
Fonte: Livro Boa Nova

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Acústico Água da Vida


A Diferença entre Crer e ter Fé


“Se o espírito humano não está sintonizado com o espírito de Deus, ele não tem fé, embora talvez creia.
 Esse homem pode, em teoria, aceitar que Deus existe e, apesar disso, não ter fé" 

 

O notável professor, filósofo e humanista brasileiro, Huberto Rohden, em um de seus oportunos comentários inseridos no livro “A Mensagem Viva do Cristo”, obra que compreende a tradução feita por ele mesmo dos quatro evangelhos, diretamente do grego do primeiro século, convida-nos a refletir sobre a significativa distinção entre crer e ter fé. Para ele, a não compreensão dessa questão tem deturpado a teologia e trazido enorme prejuízo à mensagem do Cristo ao longo desses 2000 anos.

Escreve ele:

“Desde os primeiros séculos do Cristianismo, quando o texto grego do Evangelho foi traduzido para o latim, principiou a funesta identificação de crer com ter fé. A palavra grega para fé é pistis, cujo verbo é pisteuein. Infelizmente, o substantivo latino fides, o correspondente a pistis, não tem verbo e assim, os tradutores latinos se viram obrigados a recorrer a um verbo de outro radical para exprimir o gregopisteuein, ter fé. O verbo latino que substituiu o grego pisteuein é credere, que em português deu crer. Nenhuma das cinco línguas neo latinas — português, espanhol, italiano, francês, rumeno — possui verbo derivado do substantivo fides; fé; todas essas línguas são obrigadas a recorrer a um verbo derivado de credere. Ora, a palavra pistis ou fides significa originariamente harmonia, sintonia, consonância. Ter fé é estabelecer ou ter sintonia, harmonia entre o espírito humano e o espírito divino.”

Se o espírito humano não está sintonizado com o espírito de Deus, ele não tem fé, embora talvez creia

Para o ilustre filósofo, aí está um dos maiores problemas que em muito vem prejudicando a teologia e, para explicar a diferença de significado entre uma coisa e outra, estabelece ele o seguinte paralelo ilustrativo: “Um receptor de rádio só recebe a onde eletrônica emitida pela estação emissora, quando o receptor está sintonizado ou afinado perfeitamente com a freqüência da emissora. Se a emissora, por exemplo, emite uma onda de freqüência 100, o meu receptor só reage a essa onda e recebe-a quando está sintonizado com a freqüência 100. Só neste caso, o meu receptor tem fé, fidelidade, harmonia; fideliza com a emissora”.

Dentro desse contexto, “se o espírito humano não está sintonizado com o espírito de Deus, ele não tem fé, embora talvez creia. Esse homem pode, em teoria, aceitar que Deus existe e, apesar disso, não ter fé. Ter fé é estar em sintonia com Deus, tanto pela consciência como também pela vivência, ao passo que um homem sem sintonia com Deus pela consciência e pela vivência, pela mística e pela ética, pode crer vagamente em Deus. Crer é um ato de boa vontade; ter fé é uma atitude de consciência e de vivência”, argumenta o professor Rohden.

Salvação não é outra coisa senão a harmonia da consciência e da vivência com Deus

Para ele, a conhecida frase “quem crer será salvo, quem não crer será condenado”, é absurda e blasfema no sentido em que ela é geralmente usada pelos teólogos. No entanto, “se lhe dermos o sentido verdadeiro ‘quem tiver fé será salvo’ ela está certa, porque salvação não é outra coisa senão a harmonia da consciência e da vivência com Deus”.

Em sua opinião, de sincero buscador, erudito e filósofo espiritualista “a substituição de ter fé por crer há quase 2000 anos, está desgraçando a teologia, deturpando profundamente a mensagem do Cristo”.